01/01/2017

Palavras que Marcam

O que li hoje....e é verdade.

Os meus males ninguém mos adivinha ...
A minha Dor não fala, anda sozinha ...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!
(Florbela Espanca)

Estou Tonto

Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas.
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto ...

Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto ...

Sim, verdadeiramente tonto...
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou,
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.

Mas se isto é assim, é assim.
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Bem, estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto...
Tonto. 
(Fernando Pessoa)

Começo a conhecer-me. Não existo.

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
(Fernando Pessoa)

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...
(Fernando Pessoa)

Tenho uma excelente notícia para ti: hoje é o teu último dia de vida

Admiro todos aqueles que reagem ao diagnóstico fatalísta mas também te admiro tanto a ti, que me estás a ler neste momento, enquanto bebes o teu café, na tua cidade, com o teu silêncio e o sotaque próprio
 
Ter pavor da morte não significa que se saiba valorizar a vida. Temê-la, por terror, por medo, porque “não quero pensar nisso”, não significa que se é mais chegado à essência, que se viva com tudo, que se flutue por dentro, por se estar tão em paz consigo mesmo, por se ser tão grato com a condição de gente. Nem pensar.
Acho que não conheço ninguém (pessoalmente) que viva em plena harmonia com o seu corpo, mente e espírito, não conheço ninguém que dance plenamente, sem medo, sem interferências. Não conheço ninguém que tenha uma mente absolutamente limpa, um corpo completamente são, um espírito inteiramente livre. Mas conheço quem esteja próximo, pelo menos, dessa vontade - da vontade de fazer a dança perfeita. Conheço quem trabalhe, arduamente, pelo entendimento da alma, pela libertação da mente e do corpo que, presos, pensam e fazem aquilo que a alma abomina. Conheço quem lute, diariamente, para contrariar os caprichos do ego, para descobrir o que de facto o alimenta internamente. Conheço quem sonhe saber que sonhos tem. Conheço quem já tenha começado do zero quando poderia, futilmente, estar no topo, conheço quem não queira o topo indicado porque entende que o seu topo é estar em paz consigo mesmo. Conheço quem se queira (re)conhecer e (re)descobrir porque anseia, porque sente que há uma resposta que precisa de ser encontrada: o que estou aqui a fazer?
Conheço quem respire por iluminação e amor, por entendimento e sabedoria, por sentido. Conheço quem use todos os seus sentidos para descobrir o seu próprio sentido.
E neste cruzar por estes que conheço, identifico-lhes, a todos, um padrão comum. Todos perceberam que iriam morrer ou todos, a dada altura, se sentiram efetivamente mortos por dentro. Todos foram sombra, todos já foram depressão. Todos perderam o chão. Todos mataram a ilusão da eternidade ou da paz garantida. Todos tropeçaram em si mesmos, todos caíram no poço, todos fundaram o próprio poço e por terem lá estado, metidos, infiltrados, enfiados, todos quiseram, a dado momento, de lá sair. Mas agora com verdade. Porque se não for com verdade, sabem que jamais sairão da prisão ou que, se saírem, voltarão para lá.
E há muito, a quem a vida facilitou o processo de serem realmente verdadeiros. Aqueles que foram confrontados de frente, assustados com as letras grandes, aqueles a quem foi dito “vais morrer” passaram, então, a saber viver. A amar quem sentiam que tinham de amar, a fazer o que sentiam que tinham de fazer, a ser o que sentiam que tinham de ser. Porque o espaço para a meia verdade, de repente, desapareceu, porque afinal não se quer ser obrigado a viver. Quer-se viver por opção.
Depois de confrontados com aquilo que mais tememos, a morte da ilusão da eternidade, muitos passam a saber viver. Quando confrontados com um diagnóstico fatalista, já é tão mais fácil deixar o emprego que se odeia, a mulher que se odeia, o homem que se odeia, a vida que se odeia, porque a vida é esta, é minha e porque vou morrer. O tempo passa a ser relativizado e, ao mesmo tempo, aproveitado até ao milésimo de segundo, o tempo passa a ser eterno e, ao mesmo tempo, vazio de horas. Eu só aprendi assim.
Será preciso ouvirmos todos esse diagnóstico, essa condenação? Quem me dera que não. Quem me dera que nos bastasse o dia-a-dia para vivermos de acordo com a nossa essência, mas sabemos que não é assim. Só nos mexemos, só vivemos quando nos dizem que esta vida está a acabar. Ou quando a vida se acaba, connosco ainda vivos, tal não foi a dor daquele trauma. Só funcionamos à porrada, com confrontação, com a perda repentina, com a chapada na cara. Só funcionamos quando nos tiram a base que, afinal, é movediça e nada tem de seguro.
Parece que se não tocarmos na realidade da efemeridade da vida, nunca a reconheceremos. Parece que só seremos felizes, à força e com sofrimento, parece que andamos a pedinchar que nos digam, vestidos de bata branca e com um consultório a condizer: Tenho uma excelente notícia para ti: hoje é o teu último dia de vida. E sabes porque é uma excelente notícia? Porque vais finalmente procurar aquilo que te alimenta e largar tudo o que há tanto tempo queres largar, mas que só não o fizeste antes porque precisavas de uma desculpa. Agora, toma lá a tua desculpa: Hoje é o teu último dia de vida.
Admiro todos aqueles que reagem ao diagnóstico fatalista, mas também te admiro tanto a ti, que me estás a ler neste momento enquanto bebes o teu café, na tua cidade, com o teu silêncio e o sotaque próprio, que não precisas que te condenem oficialmente e que, mesmo assim, te procuras.
(Marine Antunes in Público 10/03/2016)

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